Bençãos e Livramentos


Notícias sobre crimes bombardeiam os nossos pensamentos diariamente. As táticas para esses ataques se aperfeiçoam a cada dia: capa de jornal pela manhã, matéria de revista logo após, as emissoras de TV vem em seguida mostrando todo o seu arsenal. Nas tele-transmissões, o sensacionalismo é tanto que dá a impressão de que a qualquer hora o sangue vai espirrar em nosso prato. Os sentimentos e emoções são bastante diversificados quando presenciamos isso, para poucos bate uma profunda indignação e para a grande maioria reina um grande senso de indiferença.

Quando tudo está apenas na “telinha”, não há problema algum, todavia quando algo assim ocorre com quem amamos, ou com os nossos próprios familiares, as coisas mudam radicalmente. A violência satura cada vez mais as capitais e invadem com toda força as cidades do interior. E por isso, a cada dia nos tornamos mais sujeitos a desgraças desse tipo. A pergunta não é se ocorrerá ou não conosco, e sim: O que faremos de fato quando ocorrer? Qual seria o comportamento ideal para nós? Indignação e vingança? Justiça com as próprias mãos ou apenas desejar ardentemente a desgraça na vida de quem nos fez tamanha maldade? Será possível perdoar o assaltante que nos roubou a paz? Amaríamos os nossos inimigos? Oraríamos por quem nos persegue?

Sem dúvida as perguntas não param de vir. Pensamos muito em nós, mas por quê não pensar em Deus, e o que ele acha disso tudo ou até mesmo refletir em como Deus encara esses tipos de atitudes? Hoje veremos um pequeno exemplo de como o Senhor age e de como a sua misericórdia é grande. Nosso texto segue uma ordem que começa com a narração de fatos, desenvolvimento, derrotas e vitórias.

O ato

Em uma cidade do Interior do Ceará, a alguns quilômetros de Fortaleza, um adolescente simples de semblante amigável cometeu um crime hediondo seguido de morte. Toda a sua comunidade ficou chocada e enfurecida ao ponto de querer a morte para esse jovem. A multidão inflamada pelo ódio tenta linchar o rapaz, porém sem êxito. A polícia é acionada. A investigação começa, o inquérito ganha publicidade e o criminoso é preso. Depois disso, ele é transferido para a capital do estado.

Por ser de menoridade, ele passa por uma unidade sócio-educativa do Ceará. Para não correr o risco de sofrer sérias conseqüências de seu crime, ele acaba mentido sobre o verdadeiro artigo pelo qual responde e assim, através da mentira, consegue ter um convívio falsamente amistoso com os demais detentos.

Pela gravidade de seus atos, a justiça decreta pena máxima para ele – três anos para infratores abaixo de dezoito anos. Os meses se passam e ele chega à idade adulta. Certamente seus familiares estão longe de mais para presenteá-lo e não existem amigos na capita, quem se lembrará de tal data? Mas surpreendentemente a solitária e secreta comemoração não é passada em branco pois ele ganha uma transferência para outra unidade. A cada dia que passa, seu pseudo conforto vai embora e sua insegurança se aflora como o outono, já não há mais planos, não existem mais esperanças para o futuro. Ele mal sabia que sua história se modificaria seriamente. Um novo destino o aguardava, para pior ou para melhor... de fato essa pergunta era impossível de ser respondida naquele momento.

Enquanto tudo isso...

O nosso ministério andava com certa dificuldade, pois o irmão Cesar apresentava alguns problemas de saúde, e o Flavio ainda não tinha se engajado completamente em nosso trabalho o que o fazia ausente por algumas vezes. Estávamos notavelmente limitados em nossa atuação. Mesmo assim o ministério não parou. Eu, continuamente, estava com o Ronaldo ajudando-o em suas atividades rotineiras. Eu orava com os internos, ajudava-os a encontrar os textos bíblicos e por algumas vezes os ouvia particularmente em suas dificuldades. E se você pensa que eu não tinha também um companheiro, está completamente enganado, pois havia um que sempre me acompanhava harmonicamente nas músicas que cantava. Ele raramente desafinava e mesmo com uma idade avançada sempre se mostrava disposto a ir onde quer que eu fosse. Eu falo de meu violão, um pouco feio, mas sempre corajoso. Dessa maneira adquiri uma certa experiência, e me lembro de como todas esses momentos me fizeram crescer espiritualmente aprendendo mais do Senhor e notando cada vez mais o seu agir.

Sempre via garotos da minha idade que eram criminosos mega perigosos e, em meu coração, pensava em como era incrível o fato de Deus amar também aquelas pessoas. Não demorou muito para eu cair na real, a verdade é que eu era bem pior do que muitos ali, vi que a condição humana é mísera no geral, e é isso que deixa o amor de Deus mais significante e encantador para nós. O que somos é um poço transbordante de pecado, percebi que somos implacavelmente maus e que Jesus é verdadeiramente bom. Mesmo não tendo cometido crime algum, eu não me sentia melhor que nenhum deles.

A notícia

Em um dos sábados, quando nos preparávamos para começar mais um dia de evangelismo, um dos orientadores do CECAL veio nos falar sobre um interno que havia sido transferido recentemente para lá. Ele dizia que o jovem estava isolado dos demais, no Bloco 7 (bloco usado como solitária, e que ele estava seriamente abatido, bastante atribulado, com notáveis sintomas de depressão e com graves tendências suicidas. Eu e o Ronaldo nos olhamos por alguns milésimos de segundos quando ele perguntou: E aí Miguel, vamos? Eu disse rapidamente: Sim, com certeza.

Seguimos normalmente, nos blocos, do jeito que costumávamos fazer. E por volta das 11:05h, nos despedimos da turma de internos que estava conosco e saímos em direção ao Bloco 7. Ainda me recordo, como se fosse hoje, da apreensão que senti, era quase uma overdose fulminante de adrenalina misturada com empolgação. Mesmo andando ao lado do Ronaldo, o silêncio insistia em reinar entre nós. Não porque quiséssemos, mas porque estávamos orando e tentando pensar no quê diríamos.

Dentro

Passamos pelos corredores, de um a um os blocos iam passando à nossa direita, as câmeras passavam um pouco acima de nossa cabeça e os nossos olhares ficavam entre os nossos pés e os próximos portões.

A distância do bloco 7 diminui a cada segundo e assim que chegamos bem próximo a cela, o orientador abriu e nós entramos. Que expectativa... Confesso que, para nós, a recepção foi um pouco diferente das que costumávamos receber, mas para ele foi surpreendente receber visitas logo de duas pessoas. Nunca fiz antropologia, mas isso não era necessário para perceber o quanto ele estava desconfiado e o quanto sua aflição puxava o seu olhar para o chão. As poucas vezes em que mirou nossos em nossos olhos não o fez por muito tempo. Talvez fosse vergonha, talvez fosse temor. A notícia de seu crime estava em cada conversa, As piadinhas com tom de ameaça, conseguiam roubar-lhe o pouco de sossego que ainda restava em sua solitária sela.

Foi o Ronaldo que iniciou o diálogo. Fomos cautelosos em nossa abordagem. Nos apresentamos, e meu companheiro falou que tínhamos ido visitá-lo e assim falar de Cristo. Nesse momento, sua desconfiança já não era o maior obstáculo. Ele ficou um pouco mais à vontade e foi aí que vimos uma maior abertura, era o que precisávamos para mostrar-lhes as verdades do sacrifício de Jesus, de Seu perdão, de como é possível recomeçar (o novo nascimento) e de como o evangelho é a única porta de acesso para que o homem possa trilhar um novo caminhar com o Pai. Depois foi a minha vez.

De maneira simples e poética usei o meu violão para transmitir um pouco da bíblia. Não falei muito, apenas pronunciei uma passagem bíblica e cantei Bem Querer, uma bela canção que fala da bondade de Deus e da maldade do homem. Além de retratar bem o momento, a música se encaixava exatamente com aquilo que tínhamos pregado. Quando acabei, nos fitou com um olhar um pouco trêmulo, e pediu para que orássemos por ele. Ele ajoelhou do outro lado da sela e assim fizemos. Amém.

Depois desse dia, tínhamos autorização do Dr. Joaquim – diretor geral da casa – para ficarmos de 11:00h as 12:00h, todos os sábados, só para acompanhá-lo. Após algumas aulas, ele se quebrantou e Deus deu graça para que o arrependimento fosse produzido em seu coração. Ele creu em Cristo e de fato, e deu os seus primeiros fôlegos para uma nova vida. Reconheceu sua pecaminosidade e pediu perdão diante de seu Criador.

O Simão se prontificou para colaborar no trabalho e apareceu para nos ajudar. E como é interessante ver como Deus chama os seus obreiros. Outra vez, através de uma conversa bem informal que tive com o Joviano (um irmão de minha igreja), o assunto do CECAL entrou, nada de mais, foi algo bem superficial. Alguns dias depois, o mesmo irmão me ligou para saber mais sobre este trabalho. E para a glória de Deus, ele também se prontificou como voluntário e se propôs a nos auxiliar no ministério.

Lembro-me que além de estarmos com a equipe toda, ainda haviam visitantes. Éramos ao todo sete pessoas na solitária/dormitório orando, louvando e falando da bíblia. Para quem passava a semana toda sozinho, ter pessoas para orar e lhe ensinar a bíblia era uma grande benção.

Uma nova oportunidade

Os meses caminharam, e mesmo com algumas inconstâncias, o progresso espiritual do nosso jovem irmão era nítido. Estávamos muito felizes por isso. Mas, em outubro de 2009, ele pediu para ser transferido de unidade, pois com o fim de ano se aproximando o risco de uma possível rebelião era iminente. Sua petição foi aceita pelo juiz. E foi num sábado de visita que eu e o Ronaldo recebemos a notícia que nos deixaria momentaneamente sem reação: “O interno que vocês acompanham foi transferido para o São Miguel nesta semana. Ele não está mais aqui”.

Que choque! Meu coração acelerou. Olhamos um para o outro com aquele ar de “e agora?” Tínhamos receio se nosso irmão continuaria de pé mesmo sem acompanhamento. Eu gritava comigo mesmo: Pensa rápido! Pensa rápido! Mas meus neurônios não me obedeciam. Não conseguia raciocinar direito. Mas creio, que pela graça de Deus, Ronaldo mencionou a possibilidade de acompanharmos o querido irmão na outra unidade – São Miguel. Mas quem iria? Quando? Por onde começar? As respostas vieram automaticamente. O Ronaldo se propôs a ir e monossilabicamente e perguntou ao Joviano: E aí? E ele respondeu: “Vamos sim!”. O horário de visitas só poderia acontecer nas quartas-feiras, de 10:00h as 11:00h.

Nessa época, o Ronaldo trabalhava no SIBIMA (Seminário Bíblico Maranata), e nas quartas-feiras, seu expediente era à tarde, e o do Joviano só entrava no trabalho meio-dia. Então eles marcaram uma conversa com os responsáveis pelo São Miguel e debateram as possíveis maneiras de atuação.

Oramos e mais uma vez, o Senhor bondosamente nos escutou. A porta que parecia estar fechada ocasionou mais uma oportunidade de pregar a palavra de Deus.

O trabalho começou. “Benção seguida de benção!”, isso é o que o Joviano me dizia pessoalmente, por email e por telefone. Pois, além de acompanhar o nosso irmão querido, eles ainda estavam pregando para um número bem maior do que no CECAL. Só havia um ponto negativo nisso tudo, por ser uma unidade provisória, os internos só permaneciam naquele ali 45 dias. Então, vinha o julgamento, e eles eram novamente transferidos.

Que alívio!

Outubro estava acabando e o trabalho seguia de vento em popa. E quando entramos definitivamente em novembro, começamos a ouvir alguns comentários sobre o CECAL. O que houve? Tá sabendo de alguma coisa? Foi verdade mesmo? – alguns perguntavam para mim e eu respondia: Sinceramente, não estou sabendo de nada.

Vi o CECAL em todas as capas de jornais. A notícia principal era: “Rebelião”. Uma das mais sérias que a casa tivera. Tumulto e muita polícia. A tropa de choque entrou, tiros foram disparados e feridos foram ao chão, só depois disso a situação começaria a se acalmar.

Depois de algumas horas de conflito, a guerra acabou e o silêncio começou a invadir novamente aquele local.

Para a nossa surpresa, a rebelião havia começado exatamente onde temíamos, no Bloco 7, na tranca para ser mais preciso. Sem dúvida alguma, o nosso irmão teria sido assassinado se estivesse por lá. O meritíssimo, mesmo sem saber, foi movido pelo grande Juiz transferindo-o para o São Miguel. Mais uma vez, sua vida foi milagrosamente preservada para glória de Deus! Amém!

E nós?

Com grande esforço, fazemos de tudo para tentar levar o evangelho de uma maneira bastante didática, comprometida e consagrada. Eu não estou engajado diretamente com esse trabalho (a não ser pelas orações), mas Cristo nos faz desfrutar de certa comunhão quando alegremente fico sabendo de como as coisas estão andando por lá, de quantos estão se convertendo a Deus e de como a paz de nosso Senhor tem guiado esse trabalho.

Provavelmente, muitos daqueles jovens não irão viver até os 20 anos. Mas, se viverem, torço para que seja ao lado de Jesus, sendo guiados pelo seu Espírito, experimentando da boa, perfeita e agradável vontade de Deus. E quem sabe, um dia, faremos parte da mesma equipe, evangelizando nos presídios? Quem dera!

E foi assim que Deus fez as nossas vidas se cruzarem. Foi para darmos frutos, para sermos bem melhores juntos do que separados. Cada um tem a sua grande importância, porém sabemos que somos apenas peças, instrumentos nas mãos do Redentor, e que na verdade, o Reino de Deus não precisa de nós. O que temos é um grande privilégio de estar mostrando o mapa do tesouro para os que estão perdidos. Esse é o maior bem que um ser humano pode ter: Cristo.

Minha oração é que a benção do Senhor continue sobre nós e que mais pessoas possam estar sendo encorajadas a pregar nos presídios desse imenso Brasil. Que as fortalezas das trevas percam, a cada dia seus domínios e que os bandidos desse país venham se tornar novas criaturas, homens consagrados e santificados nos caminhos do Altíssimo.

Porque se um cair, o outro levanta o seu companheiro; mas ai do que estiver só; pois, caindo, não haverá outro que o levante”. Eclesiastes 4:10.


Em Cristo,

Miguel Alysson

Um comentário:

  1. ''E dizia-lhes: Grande é, em verdade, a seara, mas os obreiros são poucos; rogai, pois, ao Senhor da seara que envie obreiros para a sua seara''

    Meu Irmão não só como Você mas muitos estão levando a palavra para esses homens, que Deus possa lhes ajuda nessa grande jornada !!!

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