No Coração do Presídio




O que ocorreu nesse ultimo domingo não pode, simplesmente, cair no esquecimento. Eu precisava registrar, não poderia ter presenciado tantos fatos e tantas histórias e não colocar-las no papel. Não dá. O que vocês lerão a seguir, não é um resumo teológico, nem um breve catecismo, muito menos uma confissão de fé. É simplesmente a ótica de quem está na linha de frente do trabalho. São as experiências, emoções, relatos que conseguiram mexer com a minha cabeça, em fim uma narração de como foi o dia 27 de março de 2010.
Na cidade de Maranguape, a mais de 90km de Fortaleza, fica o Amanarí, um presídio construído à décadas, uma colônia agrícola, onde residem criminosos que estão em regime fechado e no semi aberto. Talvez você nunca tenha ouvido falar, talvez até tenha escutado notícias de que alguém fugiu de lá, talvez esteja se lembrando agora de um artigo na página policial citando esse nome. Mas o que você lerá aqui, não refere-se a superlotação ou coisa do tipo, o que você lerá aqui é o que se passa lá dentro, na intimidade do crime, no coração do presídio.

Antes

Domingo, manhã. Ontem eu e o Ronaldo havíamos marcado de estar no terminal do Siqueira, 8:00 h. Não é de costume eu chegar sedo, mas dessa vez eu consegui. Estou tentando lutar contra a irresponsabilidade da falta de horário. Cheguei cinco minutos antes, mas infelizmente estava chovendo. O Ronaldo estava demorando muito a chegar, eu até orei a Deus pedindo pra protege-lo na moto, para que não viesse sofrer algum acidente. Depois que falei com Senhor, me tranqüilizei.
Eu estava sentado de frente para a entrada do terminal, ao lado de um fiscal, foi aí que me deparei com uma cena que ainda está bem nítida em minha mente. Um homem só de calça, sem sapato, só de meia, com o rosto ensangüentado, sem blusa, sem nada, apenas andando de meia e calça, não havia dúvida de que havia bebido e foi assaltado. Pensei e... Lamentei, pela situação do ser humano, pela nossa pecaminosidade. Geralmente nos comportamos de maneira indiferente a isso, estamos acostumados com a violência e com a maldade, principalmente eu, mas foi aí que me lembrei da parábola do bom samaritano, lembrei de sua disposição em ajudar quem tinha necessidade e confesso que fiquei envergonhado, talvez me sentindo um levita, ou um fariseu, sei lá. Fui até ele, próximo da roleta, perguntei-lhe se sabia voltar pra casa, se tinha condição de fazer isso, pois estava muito, muito, embriagado, mesmo assim, ele disse que morava lá mesmo, pertinho, no bairro do Siqueira. Então, eu paguei a passagem dele, e assim foi, ele entrou no terminal. Logo depois que fiz isso, o Ronaldo chegou. Tive uma ligeira impressão de que não voltaria vivo pra casa naquele dia. Sempre pensei que ia me encontrar definitivamente com Deus, antes dos 30, e pra falar a verdade, seria uma honra perder a vida no campo de batalha, seria uma honra gastar a minha vida até a ultima gota por Jesus, ir até o fim pelo Reino.
O Ronaldo chegou, todo molhado, as 8:45. Não fiquei chateado não, fiquei alegre em vê-lo, pois ele estava bem. A mochila, como de costume, estava lotada, cheia de bíblias, graças a Deus. O Senhor Jesus, havia tocado em muitos corações para que pudessem nos ajudar, ou melhor, contribuir para o reino, com bíblias, revistas e ofertas para os nossos custos, louvado seja Deus por tamanha graça.

No percurso


A viagem segue, e nós precisamos parar, acho que, 4 vezes por causa da chuva. Logo, ainda na avenida, um homem que estava em uma lambreta (popularmente chamada de mobilete) entrou repentinamente em nossa faixa, freamos bruscamente. Está tudo bem.. Não foi nada. Imaginei os anjos do Senhor segurando a moto, pois o asfalto estava muito molhado e nós nem se quer derrapamos. Na viagem, eu e o Ronaldo, conversamos muito, é sempre bom trocar idéia com ele, aprendo muito, e graças a Deus, somos entrosados, miramos no mesmo alvo, amém por isso.
Na estrada, também tivemos que frear praticamente em cima de um carro grande, e quase beijamos a placa do carro. A moto, não derrapou de jeito nenhum. Não foram os pneus que nos seguraram, mais um vez, Deus nos protegeu.

Durante


Quase 10:00 h, chegamos em Maranguape, a serra está verde, bem verdinha por causa da chuva, e olha que não foi São José não. Entramos no Amanarí, pegamos a senha que autorizava o acesso, e subimos até o lugar da vistoria. Foi a primeira vez, desde que comecei a auxiliar o Ronaldo nessa missão, que nós levamos um “baculêjo” do agente. Foi engraçado, quando chegou a minha vez, eu fiquei de costas, levantei os braços e encostei na parede, o agente falou: Tu não é bandido não rapá. Eu me virei, constrangido, e ri de mim mesmo pelo mico que paguei, talvez por está tão acostumado com os relatos que acabei agindo como eles, no automático. Foi uma revista completa, nem as bíblias escaparam dessa vez, elas foram folheadas quase que completamente, uma por uma. Foi necessário. Foi para o nosso bem. O acesso ainda não estava completo, faltava chegar até os muros do presídio. Policiais armados até os dentes, ficavam em cada torre, ao todo eram 4. Deixamos as nossas identidades – RG's - com os policiais que ficavam próximos ao portão central, estes abriram os portões para, agora sim, entrarmos no AMANARÍ.
Não foi uma recepção “calorosa” como costumamos receber, até porque o presídio está sendo desativado, ninguém está entrando. Só saindo. Por isso o número de pessoas estava bem reduzido. Falamos com alguns internos, entregamos folhetos, um papo bem simples, bem apático e superficial. Vimos algumas pessoas para quem havíamos pregado o evangelho, e conversamos com alguns. Os que chegavam eu ia entregando folhetos evangelísticos, que também eram ofertas de irmãos de várias igrejas. Continuamos o trabalho, estávamos dando uma volta no local, procurando uma alma que estivesse querendo ouvir a vóz de Deus porque nós iríamos reproduzi-la para eles.
A penitenciária de Maranguape, onde estávamos, é bem antiga, foi construída a mais de 30 anos. O lugar é muito tenebroso. Não dá imaginar alguém vivendo ali. Lama pra todo canto, mato, lixo, tudo muito sujo. Haviam muitos buracos de bala nas paredes, muita gente já morreu lá dentro tentando fugir, por dívida de drogas... As mortes, também, eram de todas as maneiras que você possa imaginar, desde de tiro até facadas, e os motivos também eram os mais variados. Um lugar que ninguém, eu afirmo, ninguém gostaria de estar se não fosse movido por algo que vai bem além da razão. No nosso caso, isso tem nome, se chama AMOR. É isso mesmo, amor pelas almas, amor por Cristo, amor pela sua palavra. Amor e obediência. Esses são os dois temperos que me encorajam para estar naquele lugar. O Amanarí demonstra pra mim a realidade do coração humano sem Jesus. Eu também já fui assim, ferido, cheio de lixo, cheio de ódio, cheio de rancor, em fim “cheio de vazio”.
Quando estávamos andando pelo local, encontramos um homem, não muito jovem, mas também não era velho, no máximo 32 anos. Ele estava abaixado, com um semblante triste, olhar distante, olhos lacrimejantes e pupilas dilatadas. Tivemos a iniciativa de entregar um folheto e assim iniciar uma conversa. Lembro-me que seu nome era Alberto, logo nos disse que não tava bem, “muita nóia” na cabeça, “tô atribuladu” - foi o que ele disse – estava realmente mal. Mesmo assim, quis desabafar conosco, falar um pouco sobre a vida, sobre alguns sonhos, lembranças e desejos que estavam sendo destruídos por causa das drogas, especificamente: o crack. Simplesmente lamentável, muitos dizem que pode faltar droga aqui fora, mas lá dentro nunca falta. Eles nos confessou que chegava a usar todos os dias, de domingo à domingo, uma, duas e até mesmo três vezes por dia. Era tanta droga, tanta pedra, que não conseguia sentir mais o efeito como antes, e por muitas vezes nem sequer ele sentia a “nóia”. Mas ele demonstrou uma atenção fora do normal, havia uma abertura muito grande para o evangelho, e por incrível que pareça, o assunto estava tão interessante que conseguiu entender bem o que havíamos falado, mesmo com as conseqüências causadas pela droga, ele captou a mensagem.
Começa a chover enquanto o Ronaldo prega, nos escondemos da água, e continuamos a falar da bíblia. Não deu outra, ele nos convida para entrarmos dentro do compartimento onde eles ficavam trancados, logo na entrada das celas. Havia uma família completa sentada bem próximo onde estávamos, eles escutaram tudo que falamos. Ali era mais amedrontador, o clima era mais pesado, e conseguia ser mais tenebroso do que a estrutura externa. Havia furos por todos os lados, goteiras no teto, furos de bala na parede e furos que haviam sido feito com pregos para pendurar os celulares, que por sinal, eram muitos. O homem que conversamos tinha uma boa inteligência, uma aguçada percepção, lia bem, comparado com os demais, e até compreendia o que havia sido lido. Meu companheiro de trabalho estava pregando com mais empolgação do que o de costume, foi muito bom, essa é a segunda vez que tive certeza de que pessoas estavam orando ao nosso favor. Nunca tínhamos pregado por tanto tempo pra uma só pessoa. Um milhão de coisas passavam pela minha cabeça, pois o assunto realmente estava interessante pra ele. A bíblia foi pregada, os versículos falados, mais uma vez o Ronaldo conseguiu entrar na realidade no crime, comparações, ilustrações e aplicações foram feitas. Porém, Alberto, tinha medo de cair em tentação lá dentro e acabar voltando para o crime. A certeza de que não iria conseguir vencer o mal, dominava o coração daquele homem. Havia uma contemplação, uma admiração especial, mas não havia entrega, havia uma compreensão como, até então, inédita, mas não havia fé, talvez houvesse até um sonho de mudança, mas não uma realidade no presente.
O meu relato sobre ele se encerra aqui, não sei se haverá próxima vez, não sei se haverá um outro capítulo sobre sua vida, mas aquela experiência foi muito tocante na minha, sei lá, os meus pensamentos ainda recordam nitidamente, foi um misto de emoções. Pensei em tanta coisa que cheguei a ficar com os olhos encharcados de lágrimas, mas tive que me conter.
Deixamos com o Alberto uma bíblia de presente, dissemos que foi Deus que tinha nos dado através dos irmãos que estavam lá na liberdade, e assim saímos à procura de mais almas que se prontificassem a escutar as boas novas do Reino. Foi com esse intuito que chegamos em um espaço que era coberto somente em cima e tinha várias mesas e bancos de cimento, era onde ficavam boa parte das visitas. Eu entreguei alguns folhetos, como de costume, começamos uma conversa, percebemos que estavam interessados e por isso começamos a falar da bíblia, de Deus, de seu amor, do pecado humano e de suas conseqüências, claro, falamos também da esperança que está em Cristo. Haviam ali, naquele espaço, internos e familiares, ao todo eram dez pessoas. Mas antes de continuar, queria falar um pouco das minhas funções, das coisas que faço lá. Não exerço uma atividade direta, como ensinar, lá no Amanarí, o que faço é auxiliar o meu companheiro de batalhas, sou um “escudeiro”. Abro bíblias, dou orientações, entrego folhetos, converso com alguns, mas gosto mesmo é de ficar ao lado do Ronaldo, pois sei que sou inexperiente em relação as histórias e relatos dos mais velhos, fico me sentindo um peixe de rio que está no mar, sei que essa que é apenas uma fase, pois acredito que precisamos conhecer bem de perto a realidade do crime, precisamos conhecer como eles pensam, como se comportam, qual as suas maiores necessidades e assim poder ser mais eficiente na abordagem. Pode acreditar, é um trabalho transcultural. É completamente diferente de tudo que você já viu, não importa quantas conferências missionárias você já foi, não importa quantas histórias conheça, o mundo do crime é dez vezes mais complexo e difícil de lidar do que a realidade que eu e você enfrentamos no dia a dia. Já falei um pouco de mim e de minha função, vou retornar agora para onde parei: naquelas dez pessoas que estavam nos escutando. Como já comentei, a abordagem requer experiência, e foi isso que aconteceu, todo mundo sentado, conversando, foi aí que o Ronaldo chegou, entregamos folhetos e ele se sentou no meio deles, literalmente. Foi um pouco descarado, mas confesso que é necessário as vezes. Todo mundo tava vidrado, todo mundo atento. Pai de família, mãe, interno, todo mundo tava lá. Nunca falamos para tanta gente como fizemos nesse dia. A palavra foi pregada como se fosse a ultima vez que pregaríamos nessa vida, creio que Deus estava agindo, nos dando proteção, nos dando palavras certas, nos dando sabedoria. Foi muito bom mesmo, todos participaram, todos falavam, dúvidas eram removidas pela leitura da palavra de Deus, e assim começava a resplandecer a luz da bíblia para quem está no fim do poço. Nunca pregamos para um número tão grande de pessoas e por tanto tempo como foi o caso das dez pessoas e também nunca havíamos pregado por tanto tempo para uma só pessoa, Alberto. Foi um dia que precisava ser registrado, eu precisava escrever, porque eu preciso me recordar desse dia, lembrar de como o Senhor nos protegeu, nos direcionou. Eu preciso mostrar paras as outras pessoas o que houve, porque com essas experiências, nós aprendemos.

Depois


É hora de ir pra casa. Missão comprida, mas cumprida. A palavra foi semeada, nos despedimos e saímos pelo portão central. Almoçamos na estrada, em um restaurante que ficava lá mesmo, em Maranguape, comemos bem, mas o Ronaldo ainda queria mais comida... Pegamos o caminho de volta pra Fortaleza, no meio do percurso, o Senhor, mais uma vez, nos protegeu grandemente. Estávamos a mais de 80 Km/h, quando um pássaro grande e preto nos intercepta como um míssil, ele pelo nosso lado direito, pega em cheio no farol e sobe entre o ombro e a cabeça do Ronaldo. Eu vi tudo, acompanhei o voou do pássaro, mas o Ronaldo, por uma distração, não viu. Voltamos e tiramos o pássaro ferido, quase morto, da estrada. Foi aí que pensei, que se tivesse pego uns 10cm a cima, pegaria exatamente no pescoço do Ronaldo, com certeza perderíamos o controle da moto, cairíamos , e, a mais de 80Km/h, não sei o que aconteceria com a gente.

Para refletir


Tudo que fazemos nessa vida tem um preço. Pregar dentro de um presídio tem o seu, que por sinal é bastante alto. Tem suas alegrias, suas frustrações, as batalhas são difíceis, também tem vitória, mas podemos até nem retornarmos pra casa. Eu pergunto: Tudo isso vale a pena? Será que vale a pena pregar pra quem já se destruiu e destruiu a dos outros também? Será que vale a pena investir tão pesado naquilo que ninguém acredita? Eu respondo: em Cristo o nosso trabalho não é em vão. Eu não ligo se não gera resultado esperado, não ligo se me criticam porque é perigoso, não ligo se não recebo o apoio que gostaria, não ligo se morrer fazendo isso. Não ligo. Cristo é a minha esperança. Eu creio na mudança operada pelo Espírito, sim eu ainda creio, por mais que o crack possa parecer invencível, por mais que a criminalidade escravize literalmente até a morte, ainda que todos os dias pessoas falem que bandido bom é bandido morto, ainda que o tráfico dite as regras e a ética do submundo, mesmo assim, eu creio que Deus resgata os seus. Eu não quero ouvir o que o mundo me diz, eu só quero gastar a minha vida até a ultima gota por Deus.
Cheguei. Estava errado. Tô vivo.

Miguel Alysson
Ministério Resgate


4 comentários:

  1. Ô meu irmão,tive o prazer de ler esse lindo depoimento.E fico feliz em ver como Deus age na vida desses jovens.Acredito que Deus nao tem preferidos;Só entendo q tem pessoas que PREFERE o amor dEle acima de tudo.Graça e Paz!

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  2. Muito lindo Miguel, nunca imaginei que fosse assim!!!

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  3. Amém!
    Tivemos o prazer, neste final de semana (dias 11 e 12 de agosto), de conhecer pessolmente o missionário Ronaldo e sua querida esposa, a Thalita, em conferência à Igreja Batista Fundamentalista de Currais Novos/RN.
    Sem dúvida, uma bênção!
    Temos orado por ele e por seu ousado ministério junto aos detentos.

    Que o Senhor Jesus a todos guarde!

    NEle, que nos conclama à ousadia sempre,

    Aparecida.

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    1. Olá Aparecida,

      Creio que essa conferência deva ter sido uma grande benção. Fico feliz, e que o desafio feito se torne em uma missão e que vocês possam cumprir verdadeiramente missão.

      Bom vê-la no nosso blog, volte mais vezes.


      Miguel Alysson,
      Ministério Resgate

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